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quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

21 de Janeiro – Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa

Uma homenagem a Mãe Gilda de Ogum, que representa todos os adeptos de religiões de matrizes africanas que passaram e passam por situações de opressão no exercício de sua fé. Esse foi o fundamento da edição da Lei que decreta que o dia 21 de Janeiro é o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa.
Apesar do episódio emblemático que deu origem à data e que é apenas um dos exemplos dos muitos ataques que os religiosos de matrizes africanas passam, combate à intolerância religiosa exige que façamos uma reflexão minuciosa no nosso dia a dia.
Certa feita um amigo me perguntou por que eu não aceitava os folhetos que os evangélicos distribuíam. Apesar de haver quem entendar ser “intolerância às aversas” (esse negócio de preconceito invertido pegou mesmo!!!), não o é. O fato é que, ao distribuir aquele folheto, aquele religioso cristão está querendo me vender o Deus dele e Deus não se vende, pelo menos não na minha religião que é a religião dos escolhidos. E entendam por escolhidos todos aqueles africanos em diáspora (ou não) que sentem e tem a presença espiritual advinda de um ilê, centro de mesa branca, abassá ou o que o valha. Os escolhidos, para nós, não são os salvos do juízo final e sim os prestigiados pela herança africana ancestral.
De todo modo, voltando ao assunto, a questão é que eu não preciso daquele folheto se eu não estou à procura de um Deus nem de uma salvação, posto que já estou salva. Na verdade, acho insulto. No momento em que você tanta convencer o outro da perfeição e imprescindibilidade de seu Deus você está negligenciando e menosprezando toda e qualquer outra forma de manifestação de crença no divino. A propósito, eu não ando distribuindo contas por ai.
O dia 21 de janeiro representa cada conta que colocamos no pescoço, cada sexta-feira que vestimos branco, cada benção que a gente pede e cada cristianização que a gente rejeita. Afinal, todos nós viemos de um histórico de cristianização natural no país em que nascer e ser batizado faz parte da trajetória de qualquer criança e a opção religiosa só vem depois da crisma, quando se faz a primeira decisão: continuar o não católico; e, só depois, se pergunta e se dá a oportunidade de experimentar outras faces do divino.
Se Jesus Cristo morreu para a redenção de seus filhos, Mãe Gilda de Ogum morreu em prol de nossa libertação mental das garras das instiuições e sociedade racista e perseguidora das religiões de matrizes africanas.

Que Ogum mesmo esteja conosco, abrindo nosso caminhos.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Haiti – suas crises também são minhas

Como africana em Diáspora, tanto quanto os afro-haitianos, cada cara de dor estampada nos tablóides me causa um incômodo desconsertante como quem acaba de ver um parente passando fome e está sentado à mesa posta e farta.
Mas não é a dor de ver o sofrimento e desespero deles, é o desconforto de quem não está fazendo nada diante daqueles açoites que marcam a carne ainda hoje.
O que aconteceu no Haiti pode ter sido catástrofe natural, mas o tratamento pós-desastre é que nunca vai ser comparado ao que se daria a qualquer terra loira européia que tivesse passado por algo parecido. Afora as explicações cientifissíssimas que foram dadas pelo pastro norte-americano que associou a desgraça haitiana a pactos com o demônio em prol de sair das algemas da colonização francesa. E o Cônsul? Macumba amaldiçoou aqueles povos e as religões de matrizes africans mais uma vez são responsabilizadas pelos males do mundo à revelia de seus praticantes. E Arnaldo Jabor? Povos primitivos e bárbaros. Primitivos, sim, posto que primitivo é o que vem primeiro e somos mesmo os primeiros habitantes desse mundo e toda linhagem da raça humana de nós surgiu (vou acreditar que ele usou o termo nesse sentido). No entanto, bárbaros não somos, nem nunca fomos, afinal, esse não foi o povo deorigem germânica que invadiu o Império Romano séculos atrás? O não enfadonho e intelectual Jabor devia saber disso, sobretudo por que esse povo tá mais lá pras bandas do sangue dele, do que do nosso.
Todo dia um vídeo, uma foto, uma notícias e uma dor nova. E os braços atados, como doem. Doem como de os ossos de meu coração invertebrado, de repente, estivessem torcidos.
Doações, cartas públicas de solidariedade, notas de repúdio ao Cônsul, adoção de crianças órfãs, embarque para ajudar os feridos e desabrigados: tudo em plena validade. Só não sei do despertar do amanhã na História desse país. Aquele a quem, depois da exploração, só restou o desprezo da comunidade internacional, agora tem sobre si os olhos do mundo para ver a sua derrocada fatal.
E eu?
No âmago da minha inutilidade, choro!
Ou:
penso no Haiti, rezo pelo Haiti!
Isso por que suas crises são tão minhas que, como ele, também não sei pra que lado vou.

domingo, 17 de janeiro de 2010

E quem é mais militante que ele?

Dormi pensando naquela imagem, a imagem de meu velho pai. Aquela pessoa por quem durante muito tempo não sabia o que sentia, mas acho que não sentia nada… a indiferença.
De repente vi bulinar aqui dentro um amor que não sabia que sentia ou talvez tenha surgido agora, por que é forte como nunca tinha sentido antes por ele. Talvez o orgulho e a insistência dele em um bom relacionamento tenham fomentado isso. Não sei ao certo, mas o fato é que é isso: um amor muito grande. Talvez isso causasse estranheza em qualquer pessoa posto que amor paterno é quase sempre natural e coloco o “quase” por que eu mesma já estou nessa exceção.
Só sei que ontem acordei feliz e tranquila como uns bons banhos de folhas e outros ebós têm me permitido ficar. Me planejei toda e, nos meus planos, não ficou de fora a ida ao Shopping comprar um presente lindo para meu pai que há anos não presenteio. E apesar de parecer normal, tendo em vista ser o aniversário dele, se tratando de nós dois, não é. Isso por que, sendo de veneta como só eu sei ser, só dou presentes a quem quero, quando quero e se quiser muito. O que acaba me fazendo ir a aniversários de familiares de mãos vazias e, num domingo qualquer de agosto, aparecer na casa de uma prima com um perfume que achei que seria a cara dela, mesmo seu aniversário sendo em janeiro. (e talvez em janeiro eu chegue de mãos vazia!!!)
Enfim, programação feita e cumprida, lá vou eu e meus contreguns pra evitar carregos alheios e um belo presente em mãos. Encontro irmãos, tios, primos, meio mundo de parentes que falam comigo como se eu fosse velha conhecida e ainda dizem sentir saudade. Fico feliz, mesmo sabendo que metade é falsidade e a outra é loucura. Mas eu gosto, gosto do clima familiar (que inclui, obviamente, a já citada falsidade), gosto daquele pagodão rolando no som, homens, mulheres, crianças e as véias fogosas todas quebrando até o chão. Uma delícia!!!
Saí de lá a contra-gosto, por causa do horário e pela falta de um carro que me atormenta. Queria ter ficado pra assistir mais um pouco daquele sorriso cansado de meu pai que, mesmo fadigado, não conseguia esconder o contentamento em me ver envolvida com todos. Por trás, algums outros motivos dignos da mais plena felicidade.
Espero que ele tenha feito essa reflexão, mas acho que não o fez: o fato é que lá, diante de mim, em meio ao pagodão das véias fogosas, estava um homem completando 50 anos, com 6 filhos que não foram perdidos pela marginalidade, nem para uma bala achada de algum revólver policial, com um diploma de Bacharel em Direito em mãos e às vespera de fazer sua prova da OAB. Ali não estava só aquele Geraldo, meu pai e que eu tive diversos impasses durante os 21 anos de minha vida. Ali estava o homem preto da comunidade de itapuã, que subia e descia descalço para a praia, que tem 5 irmãos que alcançaram, no máximo, o ensino médio. Ali está o homem que cresceu com os primos de milhares de graus que nunca tiveram nenhuma perspectiva de adentrar a Academia por que sequer têm a verdadeira noção do que aquilo significa, qual sua importância ou razão de ser e até acham que aquilo não é pra eles: preferem suas redes de pesca, suas barracas de praia, seus subempregos e ai se vai a perpetuação da marginalização dos nosso negros na sociedade dos diplomados brancos.
Um homem negro de 50 anos estar vivo, por si só, já é grande motivo de contentamento diante das intempéries pelas quais nossos negros e negras têm passado, sempre achando quem lhe aponte o dedo, senão uma arma.
E um homem negro, aos 50 anos conseguir realizar seu sonho de ser Advogado é de se tomar por referência, inclusive por que, ele esteve na vanguarda de seu tempo já pelo simples fato de ter sonhado com isso e mais ainda por ter percebido que essa podia ser uma realidade palpável.
Mas ninguém mais precisa toma-lo como referência por que ele já o é para todos aqueles que estiveram do seu lado na boêmia juvenil pelos bares de Itapuã, para seus irmãos, seus sobrinhos, filhos e até seu neto de 2 anos (que, no tempo certo, vai entender a dimensão disso).
E no final de tudo, ele é mais militante do que qualquer delegado das plenárias do CONNEB, do que qualquer conferencista do CONSEG, do que todos os secretários e ministros que passaram pela SEMUR, SEPROMI e SEPPIR. Isso por que foi ele quem abriu o universo de possibilidades de todas aquelas pessoas com quem tanto ele subiu e desceu e estavam ali naquele pagodão bebendo, não o seu defunto, mas sua vitória, sua satisfação, o novo homem que se tornou, com direito a beca, colação de grau, anel no dedo e choro, mesmo tendo adquirido o hábito da leitura lendo jornais velhos achados na feirinha de itapuã com seu peculiar cheiro de peixe e mar.
Subimos e descemos discutindo tudo que achamos pertinente e nos achamos grandes militantes, mas mal sabemos qe os militantes de verdade estão ali do lado, na labuta, pra sair de algumas estatísticas de mortalidade, violência, pobreza, miserabilidade, analfabetismo, sub e desemprego para entrar nas estatística que tanto discutimos nos GTS de nossos infidáveis encontros e conferência.
Em homenagem a meu pai: José Geraldo Ramos, da comunidade de itapuã, 50 anos, bacharel em Direito, pai de 6 filhos vivos e sem passagens na polícia.
In memorian a minha mãe: Gildélia Batista Pires, da comunidade de Castelo Branco que a vida foi ceifada pelo destino enfadonho, mas que foi, durante os mais de 20 anos de relacionamento, a mulher negra que militou mais do que meu pai e, inclusive, também é grande responsável pelo se sucesso, mas que não teve tempo de escrever seu pedacinho na história.