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quinta-feira, 24 de abril de 2008

Identidade Negra e Auto-estima

Antes de discorrer sobre o tema em si, faz mister fazer breve conceituação dos termos para que possamos delimitar e fazer o recorte da discussão a ser discorrida.
Por IDENTIDADE podemos entender que seja o aspecto coletivo de um conjunto de características pelas quais algo ou alguém é definitivamente reconhecível, conhecido; é um conjunto de elementos que permitem saber quem uma pessoa é. Trazendo para a nossa discussão, podemos recorrer ao conceito de Identidade Negra que Nei Lopes traz em sua Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana: “em termos psicossociais, a convicção que um indivíduo tem de pertencer a um determinado grupo social, convicção essa adquirida a partir de afinidades culturais, históricas, lingüísticas, etc. Uma das mais árduas tarefas dos movimentos negros na Diáspora, em todos os tempos, tem sido a busca de uma coesão entre as populações negras para o encaminhamento de suas questões. E a dificuldade maior parece se centrar na definição e no desenho dessa identidade negra nos dias atuais. Ao tempo da escravidão, a produção da identidade negra nas Américas deu-se por meio de processos paralelos; pela via da Desafricanização e pela racialização. Os africanos aqui escravizados foram forçados a esquecer suas origens, para assumirem a sua condição subalterna de “negros”. Num segundo momento, o movimento pan-africanista na Diáspora pôs em curso uma reafricanização. No início do século XXI, no Brasil, a mobilização coletiva dos negros em direção às suas reinvidicações específicas ainda esbarrava na falta de uma definição inquestionável sobre quem é efetivamente negro no país.”
Dentro dessa perspectiva, ainda podemos trazer o conceito de desafricanização para que percebamos o que foi feito da nossa Identidade Negra. Assim desafricanização é também nas palavras de Nei Lopes e em mesma obra: “o processo através do qual se tiram ou se procura tirar de um tema ou de um indivíduo os conteúdos que o identificam como de origem africana. Processo psicológico e cultural de desconstrução da identidade dos africanos e seus descendentes em diáspora. A principal estratégia do escravismo nas Américas era fazer com que os cativos esquecessem o mais rapidamente sua condição de africanos e assumissem a de “negros”, marca de subalternidade, a fim de prevenir o banzo* e o desejo de rebelião ou fuga, reações freqüentes, posto que antagônicas. O processo de Desafricanização começava no continente de origem, com conversões forçadas ao cristianismo, antes do embarque. Seguia-se a adoção compulsória do nome cristão, bem como do sobrenome do dono, o que representava, para o africano, verdadeira e trágica amputação“. Sobre a auto-estima, é simples e suficiente a conceituação como o amor-próprio, a auto-valorização.
É inegável que nós negras e negros devemos sim ter uma identidade, um sentimento de pertencimento a algo, para que alcancemos uma auto-estima elevada. E para isso, certamente jamais podemos nos furtar da história. Sim, a história a qual recorremos e alguns dizem que, fazendo isso, remoemos o passado, é nosso “PASSAPORTE DA AUTO-ESTIMA”. Isso porque, é mais do que indispensável que saibamos como e de onde viemos para que entendamos onde estamos e a situação em que nos encontramos. Assim, temos que lembrar da nossa MÃE ÁFRICA. É de lá que viemos, somos filhos dela.E ai, eu não posso me esquivar de dizer a importância vital à nossa formação de identidade e conseqüente elevação de auto-estima, que tem a implementação da Lei 10.639, que traz a obrigatoriedade da História e Cultura Africana e Afro-brasileira, nos currículos escolares dos ensinos fundamental e médio.É bem sabido que quando crianças e adolescentes, nós aprendemos apenas a história eurocêntrica que nos renega ao status de APENAS vítimas da história. É bom ressaltar que não podemos esquecer de todas as mazelas a que fomos submetidos no processo histórico, mas também não podemos permitir que as análises sejam reducionistas e esqueçamos do quinhão da história (que não é pequeno) em que as negras e os negros foram protagonistas. Não podemos reduzir nossa história ao tempo em que os brancos nos “civilizaram” (ao ver deles). E a África de reis e rainhas, de cultura farta e, infelizmente, até de guerras?? Então eu ainda vou além, dizendo que, no que concerne à Lei 10.639, temos não só que cobrar a sua implementação, como também fiscalizar o COMO ela será implementada. Não podemos permitir que seu objetivo seja desvirtuado e que, de repente, vejamos nossas crianças aprendendo que os Pretos e Pretas são alguma espécie de ET’s vindos lá da Terra Mãe; não podemos deixar que nos tornem EXÓTICOS ou FOLCLÓRICOS como hoje freqüentemente, já colocam nossa cultura e nossas religiões, mais uma vez deturpando e reduzindo as perspectivas que dizem respeito a essas questões. Por isso, uma capacitação é essencial, mas essa capacitação não deve se restringir a colocar nossos professores em salas de aula pra aprender qualquer coisa sobre a África, ela deve ter uma nuance também pedagógica justamente para evitar a ocorrência de percalços nesse sentido.Em minha concepção, esse é o primeiro passo para que nossas crianças, no futuro tornadas jovens e adultos, tenham tal identidade, que não se permitam frustrações com padrões de beleza eurocêntricos, não se deixem instrumentalizar para servir ao racismo cínico e não baixem mais a cabeça pra qualquer outra perversidade do racismo cínico em que vivemos. Entendendo e tomando isso como nossa verdade, teremos então a identidade que não mais permitirá que nos chamem de macacos, cabelo de assolan, burros, desalmados, inferiores ou coisa que o valha.
Enfim, quando falamos de identidade, não podemos também esquecer a nossa identificação não só com nossas origens, como também com o outro e com o espaço em que vivemos/freqüentamos. E acho que nesse tocante, é importantíssimo desmitificar a idéia de que nós negras e negros somos racistas uns com as/os outras/os. Todos nós sabemos que, por diversas vezes, negras/os fazem piadas de suas/eus irmãs/os, policias negras/os, batendo e cometendo atrocidades contra negras/os, entre outras milhares de situações. E mais que ver essas situações, já ouvimos diversas vezes também, os brancos dizendo que não são racistas ou mesmo que o racismo nasce de nós mesmo. Essa é a mentira mais deslavada que se pode ouvir e é também a maior arma de legitimação de um racismo do qual nos restringimos ao status de sujeitos PASSIVOS. Sejamos lógicos!!! Nossos antepassados pretos e pretas vindas de África, desde então, às vezes mesmo sendo Reis ou Rainhas, foram subjugados e colocados como NADA. Depois, foram libertados, e continuaram sendo tratados como NADA, já que, sequer um dia fizeram parte da sociedade, foram renegados à marginalidade no sentido literal da palavra. Depois de lutas árduas, conseguimos galgar algum espaço, mas o estigma da inferioridade nos perseguiu. Nunca tivemos a oportunidade de nos sentirmos iguais já que a nós sempre foi negado direitos iguais e políticas de equiparação. Não é lá tão difícil perceber que quando um negro abre a boca pra insultar outro negro usando para isso a questão racial, ele não está falando por si, está sendo instrumento do racismo que é originariamente branco. Nós reproduzimos meramente o que nos foi passado durante dois séculos de libertação forjada; libertação física e aprisionamento mental. O policial negro, que suspeita do cidadão negro e só dá baculejo em preto, ele não é racista, racista é a INSTITUIÇÃO POLÍCIA, racista é o ESTADO, racista é a educação eurocentrada que ele recebeu. O policial preto que suspeita, bate e assassina preto, é INSTRUMENTO das instituições; ele foi formado pra isso, pra bater em seu irmão e legitimar um racismo que não é seu. Ele simplesmente não vê seu semelhante como seu irmão de África por que ele não foi “doutrinado” pra isso, ele não tem a identidade necessária para se enxergar no seu irmão a ponto de se ver nele e entender que, assim como ele, o preto que ele ta batendo não é, de cara, um suspeito.
E a pergunta que não quer calar: como esse aprisionamento mental se dá? O sistema racista é perverso e ele tem a maior e mais eficaz arma da contemporaneidade que são os meios de comunicação. Jornal, televisão, rádios, revistas, etc. Nunca é suficiente lembrar que, especificamente a mídia, não nos contempla, não nos reflete, não temos nela nenhuma possibilidade de identificação. A religião que dá os direcionamentos morais dos telespectadores e, por ora, teleguiados, não engloba atabaques, sacerdotisas pretas de torços na cabeça, cânticos em iorubá, toques e rituais Nyahbinghis, um enviado de Deus preto e etíope, exceto quando pretendem falar de folclore. Na moda não há penteados afros, Black Power, tranças nagô, estamparias e ou tecidos africanos, grande expressividade das modelos e estilistas negras e negros. As mocinhas e mocinhos não são negras e negros, exceto quando temos “A cor do pecado” ou “duas caras”... e eu creio que essa identidade, nós não queremos. O padrão de beleza não engloba nariz largo, lábios grossos, pele escura ou cabelo crespo. Definitivamente, a arte não imita a vida, embora essa arte desalmada tenha sido imitada. Por isso, vemos nossas mulheres pretas alisando o cabelo e querendo fazer franjinha pra ficar igual a Aline Moraes na novela das oito; vemos pessoas reproduzindo o que Ali Kamel consegue deixar nas entrelinhas (e às vezes nem tanto nas entrelinhas assim) dos programas e novelas da emissora que dirige!! Pois é...eles não são racistas!! Não são racistas, mas o padrão de beleza que está colocado é o do branco e, portanto, não é a toa que as chapinhas correm soltas. As/os negras/os querem se ver, querem se enxergar naquilo que assistem, naquilo que persistentemente lhe dizem que é o certo. Qualquer pessoa que sempre teve sua imagem subestimada, também quer um dia ser chamado de bonito, ainda que isso implique fugir de sua raiz, deixar sua identidade de lado buscando uma outra que não lhe, originalmente, não lhe pertence.
Pra finalizar, eu queria dizer que a nossa identificação (na verdade a ausência dela) está em todos os espaços e a Academia não podia se eximir disso. Digo isso por que, se Diáspora existe hoje, foi justamente por causa dessa falta de identificação que temos com a universidade. Apesar de agora negras e negros estarem presentes aqui dentro, esse espaço ainda não tem nossa cara. Pra facilitar o entendimento do que está sendo dito, é só rememorarmos como e porque surgiu o Diáspora.Ano passado (2007), no auditório da Faculdade de Filosofia e Ciência Humanas da UFBA, acontecia a I SEMCISO e nas mesas, em todas elas, não se viu nenhum negro e muito menos negra compondo-as. Intrigada, pra não dizer indignada, uma colega, também membro e fundadora do grupo(Deise Queiroz), pediu a fala e expôs sua insatisfação com aquela situação. Como resposta dos organizadores do evento, ouviu que não havia negras e negros, na academia, que pudessem compor aquelas mesas. Mais indignada ainda com a resposta com obteve, ela começou a comentar com outras/os colegas negras e negros acerca disso e de outras questões raciais do mundo acadêmico e também exterior a ele. Foi em decorrência dessas discussões que surgiu o Diáspora – Negras e Negros em Movimento.
É importante, portanto, que vejamos que apesar daquela resposta ter sido absurda, já que sabemos que existem sim, negras e negros capacitados na academia e fora dela pra discutir aqueles temas e quaisquer outros, nós temos que ocupar ainda mais espaços lá dentro. Temos que nos enxergar, nos identificar na academia por que ela também é nossa. Temos a faca e o queijo na mão, só falta olharmos pra nós e pra nossos irmãos de África e percebermos o elo que nos faz fortes.Uma identidade negra é o que nos uni, nos fortalece, e conseqüentemente, nos diz que somos tão bons ou mesmo melhores que qualquer branco. Outras libertações dependem primordialmente dessa: a libertação de uma mentalidade eurocêntrica, a construção de um identidade preta/afro-diaspórica e auto-estima elevada para aguçar a percepção da nossa capacidade de ir adiante, em busca da libertação do racismo cínico, da libertação das correntes que nos amarram na marginalidade, no sub e desemprego, na baixa escolaridade, na maior vulnerabilidade a doenças e mortalidade.