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segunda-feira, 29 de abril de 2013

PEC dos Domésticos: da invisibilidade jurídica para a concretude de direitos

                                 *Texto publicado no Blogueiras Negras dia 26.04.2013

 
No dia 28 de março, fiz uma postagem tratando da PEC dos Domésticos, mas me ative a abordar aspectos históricos e sociais, mas prometi voltar pra falar dos aspectos jurídicos. Eis que aqui estou.
“Os Direitos sociais nasceram das necessidades sócio-econômicas de um processo histórico de instabilidades. Depois da falência dos regimes absolutistas, surgiu a burguesia que trouxe o tripé valorativo da Revolução Francesa – Igualdade, Liberdade e Fraternidade. Os Direitos Sociais vieram no bojo da ordem econômica uma vez que surgiram da decadência do Constitucionalismo Liberal e da premente necessidade de resposta e saneamento da questão social geradas pelo Capitalismo.Tendo em vista que o Capitalismo se mostrou sistema econômico auto-destrutivo e conseqüentemente ocasionador da desordem com os elevados índices de desemprego e pauperização social, não havia uma preocupação direta, primária e altruísta de ajustar os problemas sociais e sim, a pretensão eminente de regularizar a situação econômica. Diante deste contexto de exclusão social e pauperização é que surgiram os direitos de segunda dimensão, denominados Direitos Sociais.” (Ramos, Gabriela. 2010, Ações Afirmativas Como Meio De Efetivação Das Normas Programáticas: A Promoção Do Direito À Educação – Monografia)
O Brasil teve, contando com a atual, oito Constituições que foram outorgadas/promulgadas nos seguintes anos: 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 e 1988. A inserção dos direitos sociais foi feita gradativamente no histórico do constitucionalismo brasileiro só vindo a aparecer explicita e especificamente na de 1937 que trouxe já também as primeiras diretrizes do direito trabalhista, quando, inclusive, foi criada a Justiça do Trabalho dentro do Poder Judiciário. Foram diversas as fases de construção dos direitos sociais e, os direitos trabalhistas, sendo espécie deste, também passou por diversos momentos até se firmar. A Consolidação da Leis do Trabalho (CLT) foi promulgada na gestão do então Presidente Getúlio Vargas em 1943, mas já passou por diversas alterações. Embora não tenha sido legislativamente substituída, sua interpretação e aplicação se atualizaram e acompanharam a dinâmica da vida em sociedade através das discussões no Judiciário que acabaram por criar uma enorme gama de súmulas e orientações jurisprudenciais.
lula.pecSe analisarmos esse histórico dos direitos trabalhistas de forma mais atenciosa não vai ser difícil perceber que até determinado momento os domésticos foram negligenciados e isso se deu por ocasião da visão escravagista que fez com que eles permanecessem invisibilizados tanto pelos legisladores, quanto pela sociedade, e perdurasse a marginalização social, a precarização no trato e o não reconhecimento de quaisquer direitos. Só em 1972 é que foi promulgada a Lei nº 5859 que, embora apresente avanços, conjunturalmente, nada mais fez do que reiterar que até aquele momento os trabalhadores domésticos eram invisíveis e ainda resguardavam o estigma da escravização.  O supracitado diploma legal deu o pontapé inicial para que os direitos dos domésticos fossem resguardados, mas veio com limitações enormes.
direitos.pecCom a Constituição de 1988, os direitos sociais ganharam um capítulo exclusivo dentro do Título que trata dos direitos e garantias fundamentais e o seu art. 7º elenca os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais. Esse mesmo artigo, porém, traz uma ressalva em seu Parágrafo Único que tira os domésticos da invisibilidade constitucional para colocá-los em uma situação inegavelmente mais confortável, mas também ainda distante de uma equiparação plena dos demais trabalhadores, ou seja, da invisibilidade, para a marginalidade trabalhista.
A PEC 66/2012 veio justamente para dar mais um passo em direção à garantia de direitos trabalhista dos domésticos à medida que os equiparou aos trabalhadores em geral (urbanos e rurais). Como toda novidade no meio jurídico, a PEC veio cercada de polêmicas, sobretudo em relação a alguns pontos de difícil aplicação (ou melhor, difícil adequação). A seguir, vou pontuar apenas os que entendo ser os mais complexos ou controvertidos:
- A indenização por ocasião da despedida sem justa causa é uma das questões que já está sendo discutida nos bastidores do Congresso Nacional por necessitar de regulamentação. O percentual que é de 40% para os trabalhadores urbanos e rurais em geral está sendo questionado a fim de desonerar o empregador havendo propostas de sua redução para uma faixa entre 5% e 10%.
 “A gente é contra esse 10% ou 5%. Se for 39,99%, é diferente dos outros trabalhadores. A gente lutou por equiparação de direito. Se for diferente, continua sendo desigualdade”, disse a presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), Creuza Maria Oliveira em entrevista ao Portal de Notícias G1.
- A garantia do salário mínimo para quem recebe salário variável traz à baila a questão dos diaristas. Na verdade, essa já era uma discussão muito corriqueira na Justiça do Trabalho que acabou por construir um entendimento de que, para não configurar a relação de emprego, a prestação de serviço poderia ser realizada, no máximo, 2 vezes por semana e isso, consequentemente, determinava a distinção entre quem tinha direito ao salário mínimo e quem poderia receber aquém desse piso. Contudo, com a extensão desse direito, a discussão volta a esquentar. Acredito que as coisas poderiam ficar como estão nesse sentido, tendo em vista que as diaristas resguardam maior liberdade de disposição do seu tempo para a prestação dos serviços, podendo, inclusive, obter maiores vantagens financeiras se tiver vários locais de trabalho: uma espécie de freelancer do trabalho doméstico.
- A proibição do trabalho noturno, insalubre e perigoso aos menores de 16 anos vem trazendo um plus, abordando também a questão da exploração do trabalho infantil. Aliás, trabalho para jovens menores de 16 anos, só como aprendizes e não consigo vislumbrar que trabalho doméstico seja estágio profissionalizante. Vejo esse ponto como um grande avanço e que deva ter suas discussões correlacionadas com o Estatuto da Criança e do Adolescente.
- Jornada de trabalho, horas-extras e adicional noturno: esses, sem sombra de dúvidas, são os pontos mais polêmicos da PEC por que o trabalhador doméstico tem suas peculiaridades e, com certeza, esses vão ser o maiores causadores de problemas de adaptação, sobretudo por que são esses pontos que mais rompem com a situação de exploração do doméstico. A jornada de trabalho fixada em 8 horas diárias e 44 semanais traz questionamentos acerca da forma de controle dessa jornada, mas nada que não possa ser resolvido com uma folha de ponto que deva registrar horários de entrada e saída dos empregados a fim de computar, os tempos de déficit e as horas-extras. Com um pouco de boa vontade, tudo pode ser ajustado, sem que se caia em perseguições e conseqüentes assédios morais. Já o adicional noturno é a questão mais discutível se pontuarmos a situação dos empregados que dormem no local da prestação de serviço. Existem 3 possibilidades: considerar hora noturna; considerar sobreaviso ou não contar como jornada. Cada uma dessas possibilidades tem uma forma de ser remunerada, umas mais e outras menos onerosas para o empregador. Esse é um item que deverá ser analisado de acordo com as discussões judiciais que virão pela frente. Vai acabar sendo mais uma temática a ter interpretação determinada pela Justiça do Trabalho por meio de suas súmulas e orientações jurisprudenciais por que só a dinâmica das relações vai conseguir orientar o que é mais justo ou adequado para as circunstâncias.
topa.tudo.pecResolvi por abordar apenas os pontos mais polêmicos, senão o texto ia virar um artigo científico o que, para um blog, não é interessante. Afora isso, é importante sinalizar que dificuldades sempre serão criadas para frear o avanço e melhora na qualidade de vida das classes mais vulneráveis da sociedade, portanto, sempre haverá questionamentos até esdrúxulos para a efetivação desses direitos, inclusive afirmações como a de que a nova PEC ocasionará uma demissão em massa dos domésticos uma vez que os empregadores não suportarão tantos ônus. Hoje já é difícil encontrar quem queira trabalhar como domésticos por que a parcela de pessoas que ainda estão numa situação de vulnerabilidade nesse nível está estatisticamente reduzindo à medida que também diminui a população miserável do país. Há mais pessoas dessas classes acessando a educação e migrando pra outras áreas do mercado de trabalho e se negando mesmo a se submeter a relações de trabalho degradantes. Para a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, já há diminuição do número de trabalhadoras domésticas no país, em parte porque as mulheres buscam outras formas de trabalho e em parte porque as famílias estão se organizando de outra maneira. Desse modo, cai por terra a teoria mirabolante das classes dominantes de que haverá desemprego em massa. Esse discurso embriagado pela dissimulação não traduz nenhuma generosa preocupação com as minorias sociais do país e sim uma tentativa de, camufladamente, manter o status quo das coisas. Mas quando algumas coisas não progridem, elas necessariamente retrocedem por que é da sua essência progredir.


OBSERVAÇÕES:
1. Tentei ao máximo evitar o juridiquês para que o texto ficasse simples e de fácil leitura, mas não deu pra tirar todos os termos técnicos. Quaisquer dúvidas, podem questionar nos coments que estarei a postos para elucidar.
2. O Ministério do Trabalho e Emprego lançou essa semana uma cartilha explicando os direitos dos empregados e os deveres dos empregadores que pode ser acessado aqui ou por meio de perguntas e respostas aqui.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

A PEC DOS EMPREGADOS DOMÉSTICOS E O PROCESSO SECULAR DE ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA


*Texto publicado no Blogueiras Negras dia 28.03.2013


“Traga Fulana pra cidade, ela me dá uma ajuda nas coisas aqui de casa, a gente dá abrigo, estudo e comida”. Não! Isso não é uma adoção, é exploração e a submissão de uma menina-futura-mulher à condição de trabalho análogo à de escravizada. 
Como não é novidade pra ninguém, o Brasil passou por um longo e doloroso período colonial utilizando mão-de-obra escravizada para se perfazer enquanto Estado, até que um belo dia, ainda no século XIX, vieram de cabeças brancas e eurodescendentes algumas medidas que deram início ao processo de abolição oficial da escravatura. A primeira delas foi a Lei Euzébio de Queiroz (1850) que proibiu o tráfico de escravizadas/os; depois a Lei do Ventre Livre (1871) que fez supostamente livres as/os filhas/os das/os escravizadas/os; a terceira foi a Lei dos Sexagenários (1885) que libertou todas/os as/os escravizadas/os com idade superior a 65 anos e a quarta a Lei Áurea (1888) que aboliu definitivamente a escravidão.

Observando a História com o cuidado que ela requisita para que não nos prendamos a versões oficiais odiosas, não vai ser difícil perceber que essas quatro medidas legais para extinguir a escravidão não foram adotadas pelas/os colonizadoras/es induzidas/os por uma súbita crise de consciência, quiçá por um ataque de generosidade. A conjuntura econômica da época não mais se adequava ao modelo escravocrata de mão-de-obra, sobretudo depois da inserção de imigrantes europeus que não eram da realeza e precisam se empregar, ganhar dinheiro e consumir para sustentar e encorpar o emergente sistema econômico capitalista. Contudo, os sinhôs e sinhás não iam, a partir dali, começar a fazer as tarefas domésticas e havendo a necessidade de delegar tais atividades a alguém que pudesse ser submetido às mesmas humilhações de sempre e, obviamente, cobrasse pouco ou quase nada. A abolição oficial, portanto, uniu o útil ao agradabilíssimo nesse contexto já que as/os negras/os libertas/os foram lançadas/os à própria sorte (ou azar) sem nenhuma política pública que os inserissem de fato na sociedade, sendo, portanto, marginalizadas/os, colocadas/os à margem. Diante da necessidade de sobrevivência é que surgiram quituteiras, lavadeiras de ganho e obviamente, os/as empregados/as domésticos/as.
Com o passar do tempo e de mais de um século, é óbvio que alguma coisa há de ter mudado: da época da abolição até os dias atuais o Brasil já promulgou seis Constituições e em nenhuma delas havia se equilibrado a relação de trabalho dos/as domésticos/as ou foram empreendidas tentativas de assegurar direitos e condições de trabalho fidedignas às demais relações laborais. A Constituição de 1988, ainda vigente, é conhecida como Constituição Cidadã, mas até então não tinha equiparado os direitos trabalhistas dos/as domésticos/as ao das/os demais trabalhadoras/es, embora seja verdade que em muito ela já tivesse avançado se comparada às demais. 
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As relações de trabalho dos/as empregados/os domésticos/as migrou de uma esfera de agressões físicas dos açoites senhorais para agressões psicológicas e emocionais. Interessante como mudou a forma de lidar com os/as empregados/as já que, legal e moralmente, não mais se admitia que fossem submetidos/as a situações gritantemente humilhantes: de repente, aquele/a empregado/a começou a ser considerado membro da família, muito embora continuasse servindo a mesa e comendo na área de serviço.  Essa afetividade induziu situações de acomodação dessas relações à medida que não havia um questionamento sobre carga horária, atribuições, excesso de trabalho, baixa remuneração, etc. Um “silêncio ensurdecedor” tomou conta de muitos/as “amigos/as da família” por que não queriam perder a boa relação com as/os parentes de consideração. Não quero dizer que não existem relações reais mantidas com base na afetividade, mas é muito evidente que beijos, abraços e palavras de confiança por muito tempo camuflaram jornadas excessivas, repousos limitadíssimos e o recuo na exigência de respeito − elos que, ao invés de afagar, acorrentavam.
O bom é que chegou o momento em que o silêncio foi rompido pela percepção de que havia alguma coisa errada nessa relação amorosa, o que, consequentemente, culminou na mobilização e organização dos/as empregados/as domésticos/as em associações e entidades de classe. Se as medidas legais do século XIX vieram de cima pra baixo e com pretensões outras que não o direto benefício das classes escravizadas, a abolição do século XXI veio da luta dos/as próprios/as explorados/as com o desenho de uma Emenda Constitucional: depois de um 13 de maio, temos um 26 de março. Espero que outras datas surjam determinando marcos de libertações outras e que, de preferência, demorem menos a chegar.
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É certo que a Lei Áurea e as suas antecessoras não conseguiram mudar a mentalidade escravagista na época e acabou por criar outros mecanismos de exploração e outros modos de manifestação do racismo. Da mesma forma acredito que não será a Emenda Constitucional 72/2013 que fará patrões e patroas entenderem que sua comodidade é fruto do suor alheio e que, portanto, deve ser adquirido como artigo de luxo. Essa relação com o/a empregado/a não precisa ser afetuosa e sim, humana, digna e que resguarde suas condições física, psicológica, emocional e financeira.

Leis não mudam mentalidades, mas indicam que há alguma nova ordem sendo estabelecida. O direito em si acompanha (ou pelo menos tenta) a dinâmica da vida em sociedade, portanto, quando há alguma mudança substancial no ordenamento jurídico, necessariamente alguma coisa está mudando na sociedade. Isso implica em dizer que, embora ainda existam os sinhôs e sinhás psicológica e ideologicamente, a nova ordem estabelecida se sobrepõe às suas mentalidades escravocratas e isso não vai mudar, sob pena do país ser vitimado pelo retrocesso.
São importantíssimas as novidades trazidas pela PEC e serão muitas as mudanças no cotidiano de empregadas/os e empregadoras/es. Em outro momento tratarei dos aspectos jurídicos, sobretudo, questões polêmicas e possíveis entraves para a adequação ao novo dia-a-dia. Exemplo de situação polêmica será a dos/as empregados/as que dormem nos locais de prestação de serviço e direitos como adicional noturno, horas-extras e jornada em situação de sobreaviso. Dada a minuciosidade das questões que exigem um aprofundamento na análise jurídica, mais adiante farei uma postagem específica. O que importa é que agora novidades como a limitação da jornada a 8 horas diárias, delimitação de intervalo intra e interjornada e pagamento de horas-extras mudam o tom essencial do que vem a ser empregado/a doméstica. Agora, mais perto da realidade dos demais profissionais, não mais serão responsáveis pela estruturação das famílias e casas alheias em detrimento das suas próprias.

**Em tempo quero registrar que fiz questão de intitular o texto usando o termo Empregado Doméstico no gênero masculino por que, além de estar relacionados entre as atividades domésticas tudo que diga respeito à casa e à família (mordomo, babá, motorista, jardineiro, segurança), o sexismo sempre faz divisões estanques de lugares ocupados por homens e mulheres, quando essa sistematização nem sempre traduz a realidade. É certo que a maioria dos postos de empregos domésticos são ocupados por mulheres, e, mais que isso, por mulheres negras, mas ser maioria não significa ser o todo. Eu também podia ter utilizado o gênero feminino para englobar homens e mulheres, como gosto de frequentemente fazer, mas nesse caso, fiz questão de deixar desse jeito. Algumas coisas ainda precisam sair das suas ordens naturalizadas (e não naturais).

*PEC = Proposta de Emenda Constitucional,  meio de alterar a Constituição Federal e que exige quórum especial já que a Carta Magna tem requisitos rígidos para ser modificada.
Gabriela Ramos, advogada, escritora amadora e amante dos poemas e crônicas no blog – Ashanti