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domingo, 28 de fevereiro de 2010

Igbadu - A Cabaça da Existência

Durante a semana que me ative À leitura desse livro  a todo momento minha sensação em relação a ele mudava. Por vez sentia um conforto em ler estórias nagôs de forma amarrada como se tivessem uma sequência cronoógica exata, o que na nossa tradição oral africana é difícil de sincronizar. No entanto, esse mesmo  fato me causava certa desconfiança por perceber que o autor se excedia nas "amarrações" e tudo se tornava por demais romantizado.
Mas essa disparidade de sensações foi apaziguando ao passar das páginas à medida que eu fui ganhando discernimento e separando o joio do trigo.  Algo interessante e que merece enorme destaque é o tratamento dado a Exu que, apesar de outros diversos autores candomblecistas tentarem desmitificar sua demonização, aqui, Adilson de Oxalá (ou Awofá Ogbebara), traz as histórias de ira e vingança do digníssimo orixá com seus precedentes, ou seja, mostrando o porque de cada atitude tomado por Elegbara. Acredito que até muitos leigos em  matéria de religiões de matrizes africanas entenderiam o lugar fundamental desse orixá sem tomá-lo pelo vilão do Axé.
Mas já caminhando para a conclusão do livro, fui novamente surpreendida e dessa vez as surpresas me deixaram não só estarrecidas como decepcionada com tudo que eu havia lido até aquele ponto.

"Xangô era realmente muito belo. Seu rosto, de feições finas, era adornado por olhos amarelados como o mel e, quando seus lábios bem delineados abriam-se em generoso sorriso, deixavam à mostra dentes perfeitos, da cor do marfim." 

Essa passagem está no livro em parágrafo posterior aos que antes colocavam o citado orixá como o símbolo da beleza e perfeição estética masculina o que implica entender que para ser o símbolo beleza, permanecemos recorrendo aos traços finos e olhos claros da descendência européia. Ou alguém que leia um trecho desses consegue imaginar um homem africano?

No final das contas, o que parecia ir razoavelmente bem, se desmancha, O autor fez com as mãos e desfez com os pés e o que podia ser um best-seller da história africana, se tornou mais um livreto de versões de mitos nagôs.
 


sábado, 20 de fevereiro de 2010

RELATOS DE (PÓS) CARNAVAL - Por que no Ilê não (deveria) sai(r) branco

O Ilê surgiu com a proposta de dar uma resposta aos blocos carnavalesco que não permitiam que negros participassem de seus blocos. No tempo das mortalhas e mamãe-sacodes pra trás pedia-se, inclusive, foto para associar-se aos blocos e cada "ficha" passava por avaliação a fim de se escolher quem podia e quem não podia entrar em determinada agremiação. 
Para além disso, e principalmente, o Ilê e outros blocos afros surgiram para elevar a estética corporal e cultural dos negros em diáspora jogados aqui nesse grande quintal de América. Portanto, se é pra falar e mostrar estética e cultura Afro, nada mais justo que nós mesmos o façamos. Afinal, nós não precisamos passar procuração pra branco nenhum, como se já não bastassem as indevidas apropriações que Danielas Mercurys e Cia Ltda fazem por ai.

Se quiser curtir cultura afro, é só descer pra Barra que nossa amada Dani diz que a Cor dessa cidade é ela, o canto dessa cidade é dela e ninguém disse o contrário. Se quiser curtir candomblé elétrico, você também pode ir reverenciar Oyá chamando egun na rua... "oyá te te...oyá te te, oyá.."
Assistimos Chiclete, Ivete, Asa e tudo o mais da pipoca, por que vocês não podem assistir o Ilê do lado de fora também? A gente sente os empurrões o tempo todo e vocês não podem?!
Não sai branco no Ilê por que se a gente dá o dedo, vocês tomam o corpo, os turbantes, os tambores e o resto todo.

Cada um no seu cada um, deixe o cada um dos outros. Já chega de apropriação da nossa cultura.
Agradecemos muito a reverência de vocês ao que produzimos, mas antes de reverenciar, vocês vaiaram bastante e agora que há uma possibilidade de rentabilidade, também não dá pra passarmos para as suas mãos.

Além disso, apesar de todos os ganhos de espaços que tivemos, nossa cultura ainda é tido como exótica. E nossas roupas coloridas e turbantes enormes não são fantasias de carnaval de marchinha pra tirar foto e achar graça no dia seguinte. Nossa roupa é "a simbolização do negro africano", é o resgate da nossa ancestralidade e é a repatriação que não pudemos fazer adentrando navios (ou aviões) de volta pra África. É a repatriação no nosso coração palpitante e nossas negras peles arrepiadas, o resgate da musicalidade africana nos tambores afro-brasileiros.

Certamente qualquer branco que leia tudo isso achei que há um tom muito passional para falar de roupas coloridas. Se é isso que você sente, é justamente por isso que você não pode sair no Ilê. Por que os pretos sabem do que estou falando e é isso que o fazem pertencentes ao tapete negro na avenida. Pertencimento que branco nenhum sente nem vai sentir. Se você entende e sente isso, mesmo tendo pele clara: hora de acordar e despertar pra sua identidade.

Só pra ficar mais elucidativo, vamos rememorar aqui o Gandhy. Olhe quanto filho-de-papai desce de seus apartamentos da Graça pra vestir a roupa branca e "pegar mulher" trocando colar por beijo??
O tapete branco aumentou, mas a essência tá se perdendo por causa deles, os brancos que não sabem nem por que foi que o Gandhy surgiu e enchem o pescoço de diloguns e monjilós brancos e azuis comprados em feiras misturados aos colares profanos pra trocar por beijo. Pergunte a algum deles o que é um Padê pra se perceber como não tem dimensão do que é a história daqueles antigos associados/fundadores. Ninguém vai lá dar de comer a Exu e a avenida vem trazendo a cada ano um número maior de corpos inflados a bombas em busca de desordem e Elegbara não deixa por menos: o tapete branco está a todo tempo sendo manchado de sangue.

Se querem mais exemplos, vamos ver o que aconteceu com o Comanche. Confesso que não acompanhei como se deu a história e os desdobramentos de desgastes da Associação, mas fiquei estarrecida ao ver o trio passando com uma banda de pagode e 3 mulheres de tanguinhas "todas enfiadas" simbolizando o povo indígena, mas precisamente, os Comanches. Acho que me deu até uma ponta de ciúmes ao vê-las quebrando até o chão, queria que isso ficasse só pra mim e mais umas dezenas que mulheres que não precisam representar a cultura indígena no carnaval.

Isso tudo mostra o quanto é difícil resistir culturalmente no pseudo-carnaval-da-diversidade. No Ilê não sair branco é também mecanismo de defesa e, sobretudo, resistência. 
No carnaval do Ouro Negro, a preciosidade é de Aluvião.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

RELATOS DE CARNAVAL (II) - Guiguio sauda Léo Santana

E lá vem o tapete negro descendo a avenida sete, passando pela Casa de Itália. Lá vai o Parangolé tocando o hit do carnaval e, de repente, no meio dos tambores, se ouve Guiguio gritar: "É isso ai, meu irmão. Parabéns pra você, Léo que está chegando com tudo trazendo o som do guetho para as paradas de sucesso do carnaval. Rebolation também é som da negrada!!!"
Certo que não foram exatamente essas as palavras, mas o sentido está perfeitamente descrito. O que se pretendeu foi elogiar e lembrar que aquele gostosão que arrasta a massa rebolando também é parte do Ilê Aiyê, do mundo negro, que ele saiu de alguma quebrada para estar ali em cima daquele caminhão cheio de caixa de som e que para tanto teve muito que suar.
Achei interessante, para além do que foi dito, a espontaneidade com que Guiguio se pendurou na grade do seu trio para acenar e saudar aquele jovem preto que tava lá do outro lado "no rebolation tion tion". E depois, só aplausos, inclusive os meus!

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

RELATOS DE CARNAVAL (I) - Pipoca com Chiclete

Segunda-feira de Carnaval, circuito Osmar, bloco desce, bloco sobe e o Camaleão passou levando seus ricos foliões que desembolsaram mais do que eu ganho no mês pra passar 3 dias ao som de Gu dá dá com a cara cheia de protetor solar e feição apática.
E olhando não tem como não perceber que quem curte De verdade o Chiclete é quem está ali beirando ao corda, tomando empurrão e revidando com uns socos e alguns logo logo levados pela rótamo, rondesp, caatinga serrena... qualquer da roupa marrom em sua mais variadas tonalidades e níveis de truculência.
Chiclete volta e eu lá de cima do apartamento, olho pela janela e só vejo uma fileirinha de abadás laranjas espremida em meio a uma massa. Sim, a pipoca engoliu o chiclete!!! Acho que foi a cena mais linda e mais emblemática que vi em todo o carnaval. A massa excluída respondendo à altura e espremendo aquela massa pálida e sem fôlego, mostrando de quem é a cidade e de quem (pelo menos) deveria ser o carnaval.
Seria uma delícia de se ver se, logo também não se pudesse notar que a PM resolveu trabalhar de cordeira do Chiclete posto que fez um nada discreto cordão de isolamento entre o bloco e a pipoca.