Dormi
pensando naquela imagem, a imagem de meu velho pai. Aquela pessoa por
quem durante muito tempo não sabia o que sentia, mas acho que não
sentia nada… a indiferença.
De repente vi bulinar aqui dentro um
amor que não sabia que sentia ou talvez tenha surgido agora, por que é
forte como nunca tinha sentido antes por ele. Talvez o orgulho e a
insistência dele em um bom relacionamento tenham fomentado isso. Não
sei ao certo, mas o fato é que é isso: um amor muito grande. Talvez
isso causasse estranheza em qualquer pessoa posto que amor paterno é
quase sempre natural e coloco o “quase” por que eu mesma já estou nessa
exceção.
Só sei que ontem acordei feliz e
tranquila como uns bons banhos de folhas e outros ebós têm me permitido
ficar. Me planejei toda e, nos meus planos, não ficou de fora a ida ao
Shopping comprar um presente lindo para meu pai que há anos não
presenteio. E apesar de parecer normal, tendo em vista ser o
aniversário dele, se tratando de nós dois, não é. Isso por que, sendo
de veneta como só eu sei ser, só dou presentes a quem quero, quando
quero e se quiser muito. O que acaba me fazendo ir a aniversários de
familiares de mãos vazias e, num domingo qualquer de agosto, aparecer
na casa de uma prima com um perfume que achei que seria a cara dela,
mesmo seu aniversário sendo em janeiro. (e talvez em janeiro eu chegue
de mãos vazia!!!)
Enfim, programação feita e cumprida, lá
vou eu e meus contreguns pra evitar carregos alheios e um belo presente
em mãos. Encontro irmãos, tios, primos, meio mundo de parentes que
falam comigo como se eu fosse velha conhecida e ainda dizem sentir
saudade. Fico feliz, mesmo sabendo que metade é falsidade e a outra é
loucura. Mas eu gosto, gosto do clima familiar (que inclui, obviamente,
a já citada falsidade), gosto daquele pagodão rolando no som, homens,
mulheres, crianças e as véias fogosas todas quebrando até o chão. Uma
delícia!!!
Saí de lá a contra-gosto, por causa do
horário e pela falta de um carro que me atormenta. Queria ter ficado
pra assistir mais um pouco daquele sorriso cansado de meu pai que,
mesmo fadigado, não conseguia esconder o contentamento em me ver
envolvida com todos. Por trás, algums outros motivos dignos da mais
plena felicidade.
Espero que ele tenha feito essa
reflexão, mas acho que não o fez: o fato é que lá, diante de mim, em
meio ao pagodão das véias fogosas, estava um homem completando 50 anos,
com 6 filhos que não foram perdidos pela marginalidade, nem para uma
bala achada de algum revólver policial, com um diploma de Bacharel em
Direito em mãos e às vespera de fazer sua prova da OAB. Ali não estava
só aquele Geraldo, meu pai e que eu tive diversos impasses durante os
21 anos de minha vida. Ali estava o homem preto da comunidade de
itapuã, que subia e descia descalço para a praia, que tem 5 irmãos que
alcançaram, no máximo, o ensino médio. Ali está o homem que cresceu com
os primos de milhares de graus que nunca tiveram nenhuma perspectiva de
adentrar a Academia por que sequer têm a verdadeira noção do que aquilo
significa, qual sua importância ou razão de ser e até acham que aquilo
não é pra eles: preferem suas redes de pesca, suas barracas de praia,
seus subempregos e ai se vai a perpetuação da marginalização dos nosso
negros na sociedade dos diplomados brancos.
Um homem negro de 50 anos estar vivo,
por si só, já é grande motivo de contentamento diante das intempéries
pelas quais nossos negros e negras têm passado, sempre achando quem lhe
aponte o dedo, senão uma arma.
E um homem negro, aos 50 anos conseguir
realizar seu sonho de ser Advogado é de se tomar por referência,
inclusive por que, ele esteve na vanguarda de seu tempo já pelo simples
fato de ter sonhado com isso e mais ainda por ter percebido que essa
podia ser uma realidade palpável.
Mas ninguém mais precisa toma-lo como
referência por que ele já o é para todos aqueles que estiveram do seu
lado na boêmia juvenil pelos bares de Itapuã, para seus irmãos, seus
sobrinhos, filhos e até seu neto de 2 anos (que, no tempo certo, vai
entender a dimensão disso).
E no final de tudo, ele é mais
militante do que qualquer delegado das plenárias do CONNEB, do que
qualquer conferencista do CONSEG, do que todos os secretários e
ministros que passaram pela SEMUR, SEPROMI e SEPPIR. Isso por que foi
ele quem abriu o universo de possibilidades de todas aquelas pessoas
com quem tanto ele subiu e desceu e estavam ali naquele pagodão
bebendo, não o seu defunto, mas sua vitória, sua satisfação, o novo
homem que se tornou, com direito a beca, colação de grau, anel no dedo
e choro, mesmo tendo adquirido o hábito da leitura lendo jornais velhos
achados na feirinha de itapuã com seu peculiar cheiro de peixe e mar.
Subimos e descemos discutindo tudo que
achamos pertinente e nos achamos grandes militantes, mas mal sabemos qe
os militantes de verdade estão ali do lado, na labuta, pra sair de
algumas estatísticas de mortalidade, violência, pobreza,
miserabilidade, analfabetismo, sub e desemprego para entrar nas
estatística que tanto discutimos nos GTS de nossos infidáveis encontros
e conferência.
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